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Música: traumas que trago – razão x emoção no grupo de tabagismo

Camila Eduarda dos Santos
Erica Bufalo
Iulia Sessak Puls Pelaquin
Viviane Cristina Pereira de Souza

Revista da SBDG – Nº 9

1 INTRODUÇÃO

O trabalho em grupo com o objetivo de cessação do tabagismo tem se mostrado terapêutico e eficaz, uma vez que, os participantes desenvolvem um sentimento de fortalecimento de vínculos entre eles, onde um membro serve de suporte e exemplo para o outro. Verbalizar experiências e as dificuldades cotidianas do processo de cessamento do tabagismo proporciona autoconhecimento, reconhecimento de suas potencialidades e suas próprias limitações.

O cigarro gera, além da dependência física, uma dependência psicológica, tornando-se um grande aliado do fumante como um suporte diante de sentimentos e situações desagradáveis e de ansiedade, dando-lhe a sensação ilusória de bem- -estar e alívio. Há um luto a ser vivenciado no processo de cessação do tabagismo, e a participação em grupos de apoio durante o tratamento oferece a possibilidade de falar sobre esses sentimentos, decisões e dificuldades.

Nesse contexto este estudo possui o objetivo geral de: Compreender como os aspectos racionais e emocionais influenciam o processo grupal na cessação de tabagismo, e apresentá-los em forma de uma música. Ainda, para melhor detalhamento do estudo, definiram-se três objetivos específicos :Identificar quais são os aspectos emocionais e racionais que influenciam o processo grupal; Analisar como estes aspectos influenciam o processo de grupo; e Criar uma música que expresse o conflito razão versus emoção em indivíduos participantes de um grupo de cessação de tabagismo.

Como problema de pesquisa, a questão propulsora de todo o trabalho é: Como os aspectos racionais e emocionais influenciam o processo grupal na cessação de tabagismo?

Para tanto a escolha da criação da música sobre o grupo de tabagismo deu-se devido às inúmeras dificuldades no processo de cessação do vício, existência de conflitos razão versus emoções no processo deste grupo e pelo fato da arte da música ser um instrumento que pode ser utilizado como ferramenta de mudança, oportunizando então a sensibilização e mobilização das pessoas quanto ao vício, impactos psicológicos e danos causados à saúde pelo tabaco.

De acordo com Vigotski (1999), a arte é a objetivação dos sentimentos humanos, uma técnica elaborada pelos homens que permite aos indivíduos socializar determinado sentimento, como também, ao mesmo tempo, torná-lo pessoal, parte do psiquismo. Segundo o autor, a arte como forma de forma de recriar a realidade material e transformar o próprio sujeito.

A vivência artística tem função organizadora, o homem pode se apropriar de experiências alheias, que não seriam possíveis na sua vida particular, enriquecendo seu próprio repertório e sua visão de mundo, e desta forma, constituindo-se em forma de conhecer a si e ao mundo.

2 PROCESSO GRUPAL

                Um dos principais teóricos acerca dos processos grupais é Bion, que foi um psiquiatra e psicanalista inglês desenvolveu várias pesquisas sobre a formação e fenômenos de grupo, resultando na elaboração de uma teoria sobre grupos. Seu principal influenciador foi Sigmund Freud, principalmente, no que se refere à psicologia individual e de grupo.

As principais fontes de pesquisa de Bion foram os grupos terapêuticos que desenvolveu no seu consultório, na Clínica Tavistock e no Hospital militar de Northfied. Muitos dos conceitos desenvolvidos nas suas pesquisas se tornaram relevantes para a compreensão dos grupos de trabalho e os fenômenos emocionais oriundos dele. (ZIMERMAN, 2008, p. 107).

 Dentre as teorias de grupo de Bion (1975), algumas tiverem grande representatividade e permanecem vigentes na atualidade, como: Espírito de grupo; Mentalidade grupal; Cultura do grupo; Valência; Grupo de trabalho; e Grupo de pressupostos básicos.

Bion (2008) identificou três tipos de padrões de comportamentos denominados “dependência”, “acasalamento” e “luta-fuga”. As emoções básicas como amor, ódio, medo e ansiedade estão presentes em qualquer situação, mas o que caracteriza cada um dos três tipos de pressupostos básicos é a forma como esses sentimentos estão combinados e estruturados (ZIMERMAN, 2008, p.109).

2.1 Conflito razão versus emoção

Cada indivíduo é formado por um conjunto de aspectos fisiológicos, racionais, emocionais, psicológicos, entre outros, isto é, por características que os torna diferentes e únicos. Para entender melhor o jeito único de cada ser, Goleman (2012, p. 36) detalha como é o nosso cérebro:

A parte mais primitiva do cérebro, partilhada por todas as espécies que têm um sistema nervoso superior a um nível mínimo, é o tronco cerebral em volta do topo da medula espinhal. Esse cérebro-raiz regula funções vitais básicas, como a respiração e o metabolismo dos outros órgãos do corpo, e também controla reações e movimentos estereotipados. […] Da mais primitiva raiz o tronco cerebral, surgiram os centros emocionais. Milhões de anos depois, na evolução dessas áreas emocionais, desenvolveu-se o cérebro pensante, ou “neocórtex”. […] O fato de o cérebro pensante ter se desenvolvido a partir das emoções revela muito acerca da relação entre razão e sentimento; existiu um cérebro emocional muito antes do surgimento do cérebro racional (GOLEMAN, 2012, p. 36).

Cada cérebro possui então duas funções, os quais permitem que haja a existência da inteligência racional e a emocional e, por isso, o desempenho de cada indivíduo é decorrente dessas duas relações: razão versus emoção. Vale frisar que, para que o intelecto dê o melhor de si é imprescindível que este conte com a inteligência emocional (GOLEMAN, 2012).

A mente racional é a parte onde se tem a consciência, o modo de compreensão das coisas, sendo esta mais rápida e capaz de realizar reflexões, já a mente emocional é a parte mais impulsiva e, também por vezes ilógica (GOLEMAN, 2012).

Goleman (2012) aponta que as emoções são importantes para a racionalidade e que a emoção guia nossas decisões em todos os momentos, trabalhando junto à mente racional de forma a capacitar ou incapacitar o próprio pensamento. Contudo, o cérebro racional atua como administrador do cérebro emocional, exceto nos momentos onde as emoções tomam contam do indivíduo e assumem o controle da situação (GOLEMAN, 2012).

2.2 Grupos de cessação de tabagismo

De acordo com a teoria de Lewin (1978), um grupo não é a somatória de seus membros, mas tem suas propriedades específicas na sua totalidade, constituindo um conjunto de relações em constante movimento. Possui estrutura própria, objetivos e relações com outros grupos. A essência de um grupo não é a semelhança ou a diferença entre seus membros, mas sua interdependência. Lewin caracteriza um grupo como sendo um todo dinâmico, o que significa que uma mudança no estado de uma das suas partes provoca mudança em todas as outras. Nesse sentido, as tentativas com vistas à realização dos objetivos grupais criam no grupo um processo de interação entre as pessoas, que se influenciam reciprocamente e pode haver a produção de novos significados e metas.

Para Bleger (1998) os participantes do grupo têm a oportunidade de debater em grupo as experiências vividas, o que possibilita aos participantes uma autopercepção do seu processo, bem como uma visão grupal mais ativa sobre a realidade a qual faz parte. O Grupo de cessação do tabagismo, portanto, apresenta uma prática que se fundamenta no trabalho coletivo, na interação e no diálogo. Possui caráter informativo, reflexivo e de suporte, e sua finalidade é identificar dificuldades, discutir possibilidades e encontrar soluções adequadas para problemáticas individuais e/ou grupais que estejam dificultando a adesão ao tratamento, conforme Bleger (1998) conceitua sobre o trabalho em grupo.

De acordo com Bleger (1998), além da necessidade de um conjunto de pessoas que atuem em interação entre si, no grupo é fundamental que uma sociabilidade seja estabelecida a partir da cooperação entre os pacientes durante a participação no grupo e a própria criação do vínculo afetivo é considerada uma forma de lidar com o mal-estar relacionado à mudança de hábitos. A interação dos diferentes papéis grupais para que entre eles possa emergir uma mudança, como relaciona a teoria “com os papéis individuais refaz-se, no grupo, o processo total da aprendizagem, tendo em conta que cada integrante pode assumir funcionalmente papéis diferentes conforme o tema, os momentos ou níveis da aprendizagem” (BLEGER, 1998, p. 87).Muitas são as dificuldades ao parar de fumar, como a crise de abstinência, as recaídas, o aumento de peso, o medo de julgamento entre outros, mas o trabalho em grupo pode ser um suporte muito eficaz durante o tratamento.

3 MÉTODO

A pesquisa foi realizada em uma instituição de saúde no interior do Paraná, que possui um programa de cessação do tabagismo com encontros semanais.

Para a coleta de dados, utilizou-se então da observação participativa e não-participativa de um dos encontros de um grupo de cessação de tabagismo. Duas profissionais da instituição que co-coordenavam o grupo são pesquisadoras deste trabalho, e outras duas pesquisadoras, que não são profissionais da instituição, ficaram como observadoras, registrando suas percepções sobre o processo do grupo.

Cabe ressaltar que foram realizadas as devidas explanações e os participantes concordaram como Termo de Livre Consentimento.

Ao término do encontro a equipe se reuniu para a discussão e análise do encontro. Transcreveu-se falas e percepções sobre o processo do grupo, que foram utilizadas para a criação da letra da música. Além disso, foram acrescentadas palavras para que a música pudesse conter em sua composição a melodia estruturada. Em seguida, foi realizada a instrumentação da música (ritmo, harmonia e melodia), a qual foi elaborada por Giuliano Pazinato Pelaquin, músico profissional.

Após, fez-se uma correlação da letra da música criada com a teoria do presente trabalho a fim de fundamentar a existência dos conflitos razão versus emoção. Por último, realizou-se a análise semiótica da música criada.

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

Todo grupo encontra-se devido a um propósito, e de acordo com o que cada um busca, eles se doam e cooperam para que seja possível a experiência. Durante a observação deste trabalho, foi possível identificar os aspectos emocionais e racionais que estão presentes no grupo de cessação de tabagismo e que interferem no processo do mesmo, através dos relatos de vivências e percepções dos participantes observados.

Foi possível observar, que no grupo de tabagismo permeiam questões fundamentais como a troca de experiências, a criação de vínculos, as motivações particulares para a mudança de hábitos, que são interações importantes que os próprios participantes estabelecem durante o trabalho em grupo. Ao mesmo tempo, as dificuldades no processo geram sentimentos contraditórios entre a razão e a emoção que constituem o processo grupal. De acordo com as teorias apresentadas, podemos de fato constatar a existência dessas duas forças, razão e emoção, que fazem parte do processo e quando bem trabalhadas facilitam o processo de cessação.

Apresentamos, a letra da música composta:

Traumas que trago

Antes não me fazia falta, era bom era só prazer Começou como um desafio, uma brincadeira De repente já precisava de você para pensar Pra me consolar, pra ficar tudo bem Não podia mais dormir sem o seu beijo E a primeira coisa em que eu pensava ao acordar pra me acalmar era você

Ref. O desafio agora é retomar o controle Me vejo preso nesta armadilha que eu mesmo criei Tento, tento, tento, mas não acho uma saída Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar

Sua falta era insuportável, no meu sonho você vinha Como algo tão pequeno tomou conta da minha vida Você sumiu feito fumaça, deixando um rastro de cinzas Agora sinto tudo bem melhor, com mais cheiro e sabor Cego, achava que você era a cura Sem perceber que na verdade o vício era vontade que me aprisionava a ti

Ref. O desafio agora é retomar o controle Me vejo preso nesta armadilha que eu mesmo criei Tento, tento, tento, mas não acho uma saída Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar

O tempo faz bem e não precisava mais da sua companhia Mas nem por isso me descuidava eu forçava eu fugia Até o dia em que eu te vi e o seu gosto já senti O coração batia acelerado e o suor em minhas mãos Você levava tudo que me era bom Rouba o meu dinheiro, as pessoas que me importam, você me roubou de mim

Ref. O desafio agora é retomar o controle Me vejo preso nesta armadilha que eu mesmo criei Tento, tento, tento mas não acho uma saída Mas eu sei que posso ser livre de novo

Ref. Alguém vem em meu socorro, quando olho pro seu rosto, vejo um espelho com minha alma refletida e de mais alguém Seu olhar já me diz muito, juntos nada, nada é tudo Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar

4.1 Análise da música sob a luz do referencial teórico

No trecho “Antes não me fazia falta, era bom era só prazer/Começou como um desafio, uma brincadeira/De repente já precisava de você para pensar/Pra me consolar, pra ficar tudo bem/ Não podia mais dormir sem o seu beijo/ E a primeira coisa em que eu pensava ao acordar pra me acalmar era você” o sujeito começa a perceber que seu hábito tornou-se uma dependência. O que antes era algo banal, sem importância, acaba tornando-se indispensável. É um início de tomada de consciência e reflexão e os grupos ajudam neste processo de repensar conceitos, de trabalhar um olhar diferente acerca de si e dos outros. Aqui podemos fazer uma análise com uma das teorias dos grupos de Bion (1975) sobre Grupo de Trabalho, em que ele descreve como união de pessoas para fazer algo específico de acordo com suas capacidades e objetivo.

Adiante, no refrão “O desafio agora é retomar o controle/Me vejo preso nesta armadilha que eu mesmo criei/Tento, tento, tento, mas não acho uma saída/ Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar” o indivíduo percebe que algo precisa mudar, mas ainda não sabe como. Eles se reconhecem pela emoção, mas se apoiam pela razão. Nesse contexto Bion (1975) fala que a atividade mental de um grupo possui dois níveis de funcionamento, consciente que é baseado na realidade e é racional e o inconsciente que é mais emocional, em que o grupo é orientado a evitar o que desagrada.

O tabagismo influencia vários aspectos da vida de um indivíduo, seja na sua própria saúde, na saúde dos familiares que moram na mesma residência, seja nas relações interpessoais. É um processo que envolve mudanças de hábito, investimento emocional e até mesmo angústias devido à balança decisória entre a vontade e a necessidade de parar, como exemplifica o refrão citado. Em sua teoria, Bleger (1998) relaciona a vivência em grupo como complexa e mais do que um desenvolvimento exaustivo, com a função de provocar, incitar ou estimular tanto uma mudança de nossas estereotipias teóricas e técnicas, como uma administração de nossos recursos.

Observa-se, que os conflitos razão x emoção permeiam a música como um todo e há versos em que a emoção está cada vez mais intensa: “Sua falta era insuportável, no meu sonho você vinha/ Como algo tão pequeno tomou conta da minha vida”. Conforme Goleman (2012) quanto maior fora intensidade de sentimentos maior será o controle emocional e, consequentemente, menor será o controle racional. Nestes versos o sujeito perde o controle racional e deixa-se levar pela emoção, inclusive aponta que o cigarro toma conta de sua vida, ou seja, há tanta dependência do cigarro que este controla totalmente sua mente emocional. Essa é uma das falas que pode afetar e muito o desenvolvimento do grupo fazendo com que outros participantes também se firmem somente na mente emocional e se enfraqueçam na tentativa de parar de fumar.

Conforme o autor Goleman (2012) informa, temos duas mentes e por alguns momentos, quando o sujeito sai do inconsciente e vai para o consciente, sua mente racional passa a assumir parte deste controle, como podemos ver nos versos “Você sumiu feito fumaça, deixando um rastro de cinzas/ Agora sinto tudo bem melhor, com mais cheiro e sabor”. Este trecho representa o momento em que foi possível romper com a dependência, e se experimenta uma melhora no funcionamento do organismo, como melhoria no olfato e paladar, mas também o sabor da vida, poder vivenciar novas experiências. E, ainda, esse verso demonstra que conforme o participante reconhece o quão é bom ficar sem o cigarro e expõe isso no grupo, o grupo fortalece a racionalidade, fazendo com que se sintam fortalecidos e perseverem no grupo, uma vez que, se um conseguiu parar de fumar e está tendo êxito, é possível que eu também consiga.

Cego, achava que você era a cura/ Sem perceber que na verdade o vício era vontade que me aprisionava a ti”. Este trecho representa os momentos em que o sujeito a princípio se perde na emoção, mas ao pensar de forma consciente novamente, se dá conta de que o vício o aprisiona e o deixa cego, cegueira esta que representa exatamente o forte controle emocional, o qual impede que o indivíduo busque o equilíbrio entre razão e emoção, apontado pelo autor Goleman (2012) como fator importante para minimizar tais conflitos internos.

O conflito razão x emoção é constante no processo de cessação de tabagismo e, diante disso, as coordenadoras fazem uso da emoção presente para compreender o processo grupal e dentro de suas condições individuais, realizam as intervenções necessárias para contribuir para que o grupo faça reflexões importantes, exponham suas opiniões e sentimentos.

Diante desses conflitos torna-se imprescindível que as coordenadoras atentem-se com as armadilhas que podem potencializar os gatilhos que levam os participantes a terem vontade de fumar, como podemos observar nos trechos a seguir “O tempo faz bem e não precisava mais da sua companhia/ Mas nem por isso me descuidava eu forçava, eu fugia/ Até o dia em que eu te vi e o seu gosto já senti/ O coração batia acelerado e o suor em minhas mãos”. Nestes versos o sujeito deixa claro que por um tempo conseguiu ficar sem o cigarro, mas que essa “paixão” é mais forte do que ele e por isso não se descuidava. Porém, ao ceder novamente ao vício e recorrer ao cigarro, o corpo passa a responder essa paixão com o coração acelerado e suor nas mãos, que representam a ansiedade vivenciada neste momento, e também, os efeitos que as substâncias presentes no tabaco podem gerar no organismo.

Goleman (2012) ressalta que entre as mentes racional e emocional há um equilíbrio, porém quando surge alguma paixão, a mente emocional assume o controle e invade a mente racional. A partir deste apontamento do autor, compreende-se o quanto esta paixão (vício) é tão forte a ponto de o sujeito apresentar extrema dificuldade de evitar o cigarro, extinguir essa dependência e manter um equilíbrio razão x emoção.

Em alguns momentos desta busca, reflexões baseadas na realidade, pensadas com a lógica, fazem o contraponto com a emoção, e os versos demonstram mais momentos de consciência do sujeito “Você levava tudo que me era bom/ Rouba o meu dinheiro, as pessoas que me importam, você me roubou de mim”. Estes enfatizam o quão desesperador é quando se depara com a realidade, que até então tentava não ser vista. Esse verso sinaliza também que o grupo também se sente “roubado” pois o sentimento de um é compartilhado por todos e o comportamento ao ouvir falas que representam este verso é de tristeza, vergonha, arrependimento e faz com que o grupo baixe sua energia e, caso o coordenador ou algum membro do grupo, não se manifeste isso pode ser prejudicial ao processo grupal, uma vez que a emoção está tomando conta da situação e é necessário que alguém contraponha a situação demonstrando que é possível ter uma vida nova, saudável e sem a dependência do cigarro.

O refrão é retomado representando que romper com uma dependência não é uma vivência linear, uma caminhada direta ao objetivo. “Tento, tento, tento, mas não acho uma saída/ Mas eu sei que posso ser livre de novo”, demonstra a dificuldade em persistir no tratamento e chegar ao objetivo, que é a alcançar os benefícios com a cessação do tabagismo. Os versos ilustram o quanto o processo da cessação pode ser doloroso, não apenas pela dependência química mais devido à dependência psicológica também. Para Bleger (1998, p. 61), “o problema não diz respeito apenas a saúde pública ou à mental – o que por si só seria suficiente –, mas também à profundidade e extensão das questões, bem como os tipos de problemas que o grupo precisa enfrentar”.

Questões complexas como a recaída acontecem em momentos que o lado emocional se sobrepõe e, apesar de não serem desejadas, podem ajudar na reflexão acerca da dependência. Quando há o desejo novamente de romper com o vício, o sujeito possui uma bagagem de vivências que não tinha antes, ele já não é mais o mesmo, portanto, o refrão aparece com uma leve modificação: “Mas eu sei que posso ser livre de novo”.

Mais adiante, o trecho “Alguém vem em meu socorro, quando olho pro seu rosto,/ Vejo um espelho com minha alma refletida e de mais alguém/ Seu olhar já me diz muito (…)” aparece com o intuito de trazer uma metáfora para o apoio que é possível encontrar em grupos onde os participantes podem perceber que existem outras pessoas que também vivenciam a mesma situação, e que a identificação fortalece os vínculos. Aqui vemos como é importante o grupo no processo para parar de fumar, eles se reconhecem uns nos outros, refletem sobre as histórias. Nesse contexto fazemos uma análise com a Mentalidade Grupal em que Bion (1975) designa que um grupo funciona como uma unidade, com uma atividade mental coletiva própria e que muitas vezes conflita com a mentalidade individual do componente grupal.

Para finalizar, os versos “(…) juntos nada, nada é tudo/Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar” tratam do objetivo da resolução do conflito razão x emoção, que é a busca do equilíbrio para eliminar uma dependência, e enfim, atingir o “nada”. Aqui, percebe-se, novamente, o que foi discutido anteriormente acerca da importância dos grupos de apoio, pois “juntos”, apoiando-se mutuamente, poderão chegar ao objetivo, ao “tudo”, e enfim, conquistar a liberdade e poder “voltar a respirar” tanto em um nível fisiológico, pois no caso do tabagismo, a capacidade pulmonar pode ser recuperada, mas principalmente como uma metáfora à sensação de alívio gerada pela conquista.

4.2 Análise semiótica da música “Traumas que trago”

O começo das estrofes da música se mantém no acorde de Si Menor com pequenas variações de acordes dentro do 1º grau do campo harmônico, denotando o cotidiano, como pode-se perceber na primeira estrofe, nos versos “Antes não me fazia falta, era bom era só prazer/ Começou como um desafio, uma brincadeira/ De repente já precisava de você para pensar/ Pra me consolar, pra ficar tudo bem”.

Em seguida há um pré-refrão: “Não podia mais dormir sem o seu beijo/ E a primeira coisa em que eu pensava ao acordar pra me acalmar era você”, que demonstra um início de conflito, através de uma tensão trazida pela mudança de acordes para o 4º grau do campo harmônico.

O refrão inicia com um caráter mais racional e, portanto, menos complexo harmonicamente. Em contrapartida, as duas frases finais do refrão possuem características de emoções. “Tento, tento, tento, mas não acho uma saída”, aqui a melodia se torna ascendente conforme vão acontecendo as tentativas, para demonstrar uma busca pela conquista do objetivo, e em seguida descente devido à frustração de não encontrar a solução.

Mas, surge uma esperança em “Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar”, e por isso há um acento rítmico e uma mudança harmônica brusca. A forma como é cantada a passagem do refrão para a estrofe seguinte, ao não utilizar uma pausa entre eles, significa que ainda não é possível respirar devidamente.

A estrofe “Sua falta era insuportável, no meu sonho você vinha/ Como algo tão pequeno tomou conta da minha vida/ Você sumiu feito fumaça, deixando um rastro de cinzas/ Agora sinto tudo bem melhor, com mais cheiro e sabor” fala de um novo cotidiano sem o vício, e por isso volta a ser tocado no acorde de Si Menor com pequenas variações de acordes dentro do 1º grau do campo harmônico.

O trecho seguinte “Cego, achava que você era a cura/ Sem perceber que na verdade o vício era vontade que me aprisionava a ti” trata de um insight importante acerca do próprio comportamento e por isso há novamente uma tensão trazida pela mudança de acordes para o 4º grau do campo harmônico.

Mais uma vez há o refrão, e este segue a mesma estrutura, pois ainda mantém a mesma função dentro da composição da música.

A estrofe “O tempo faz bem e não precisava mais da sua companhia/ Mas nem por isso me descuidava eu forçava, eu fugia/ Até o dia em que eu te vi e o seu gosto já senti/ O coração batia acelerado e o suor em minhas mãos/ Você levava tudo que me era bom/ Rouba o meu dinheiro, as pessoas que me importam, você me roubou de mim” também segue a estrutura de acordes em Si Menor com pequenas variações de acordes dentro do 1º grau do campo harmônico no início e acordes para o 4º grau do campo harmônico no final denotando sentimento de raiva e frustração. Na parte da letra em que diz “O coração batia acelerado (…)” os violinos simulam um batimento cardíaco em alta frequência.

Há uma repetição do refrão, mas sem o efeito melódico causado pela ascendência e descendência das notas que havia anteriormente. Uma sucessão de acordes diferentes leva a música para novas direções, o que demonstra uma mudança que vem acontecendo, mas que ainda não se sabe exatamente qual será o rumo final. Esta mudança também é expressa na letra, onde a última frase é diferente dos refrãos anteriores: “O desafio agora é retomar o controle/ Me vejo preso nesta armadilha que eu mesmo criei/ Tento, tento, tento, mas não acho uma saída /Mas eu sei que posso ser livre de novo”.

Essa mudança é uma preparação para o que vem a seguir. O refrão reaparece, mas com uma transformação completa: “Alguém vem em meu socorro, quando olho pro seu rosto/ Vejo um espelho com minha alma refletida e de mais alguém”.

Esta mudança também é perceptível pela alteração dos instrumentos presentes. Agora, há apenas a voz com um fundo de piano e violão, para demonstrar que o apoio do grupo traz mais conforto, que é uma mudança para algo mais calmo.

 Há uma nova letra para o refrão. Em relação à harmonia, os acordes das duas primeiras frases são os mesmos, para caracterizar que ainda é o refrão, uma mesma situação já vivida, mas enfrentada de forma diferente, pois o emocional já está mais equilibrado.

No início de: “Seu olhar já me diz muito, juntos nada, nada é tudo/ Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar”, ao invés de iniciar com Lá Menor, foi utilizada sua inversão, os seja, Dó Maior. As inversões são acordes que mudam pouco harmonicamente, porém a troca de um acorde menor para um maior já traz uma conotação mais alegre. É uma nova fase, na qual o apoio de uma pessoa surge, e faz com que a situação mude grandemente. Esse suporte torna a situação menos difícil, e por isso o ritmo fica mais lento, trazendo uma ideia de acolhimento.

Cabe enfatizar a última frase: “Sei que se eu persistir vou poder voltar a respirar”. Foi utilizada uma progressão de acordes que indica que a música irá se resolver. Além disso, agora a palavra respirar é verbalizada gradual e ascendentemente, trazendo a sensação de alguém enchendo os pulmões de ar, tornando possível pela primeira vez respirar de forma completa, demonstrando o novo fôlego, tanto pela vida quanto pela melhora física ao cessar com o tabagismo.

A música iniciada em um acorde menor é finalizada com um acorde maior, trazendo a sensação de que algo começou conturbado e terminou bem.

4.3 Correlação da composição da música x processo grupal

Análise realizada pelo compositor Giuliano Pazinato Pelaquin, cordialmente cedida para este trabalho.

Para a composição da letra da música, conforme mencionado anteriormente foram transcritos num papel as falas dos participantes e algumas percepções do processo grupal, onde, para tal composição estruturou-se os versos da música conforme o processo do grupo, ou seja, seu funcionamento.

No primeiro verso da música o grupo encontra-se num estágio mais racional, relatando sobre como iniciaram o consumo do cigarro, onde ainda existia o controle do vício e de si mesmo. O refrão demonstra um estágio totalmente emocional, com a percepção da dependência e de muita resistência com os versos “Tento, tento, tento”.

Diante desses conflitos racionais e emocionais, surge a ambiguidade onde o grupo começa fazer algumas reflexões importantes (aspectos racionais) sobre a dependência química, a influência dos hábitos e a dependência psicológica.

O refrão passa a ser cantado mais devagar e representando uma maturidade do grupo, onde as reflexões com aspectos racionais passam a aumentar, conforme pode-se observar nos versos.

Mesmo com a fase de maturidade, o grupo ainda apresenta sinais de conflitos quando relata que “Até o dia em que eu te vi e o seu gosto já senti” demonstrando sinais de recaída, no entanto o grupo retoma novamente os aspectos racionais identificando o quando o cigarro era prejudicial. Os roubava de si e de tudo o que possuía como saúde, lazer, família, liberdade, entre outros.

Ainda que aconteçam as recaídas, o grupo permanece forte e demonstra sua força na união que há entre os participantes através do refrão que já não é mais o mesmo, pois agora o grupo está mais confiante de que poderá ser “livre de novo”.

Para finalizar, o último verso é cantado ainda mais devagar e de forma “leve”, com muitas melodias para representar que o grupo conseguiu formar sua identidade, consegue caminhar e “juntos” serão capazes de persistir (mesmo com os conflitos racionais e emocionais) para libertar-se da dependência deste vício.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da observação de um grupo de cessação de tabagismo percebeu-se que o conflito razão versus emoção aparece a todo o momento em falas de participantes e que estes afetam o desenvolvimento do grupo à medida que cada indivíduo se comporta, que o grupo resiste, quando os gatilhos são acionados e levam o grupo a expor mais suas emoções e, também, quando há pareamento entre participantes do grupo onde um se fortalece no outro para defender-se ou justificar-se do porquê também não consegue parar de fumar.

Espera-se que a produção musical resultante deste trabalho possa ser utilizada por outros indivíduos que estejam vivenciando este mesmo conflito interno, que esta música contribua para reflexões e, também, para que os sujeitos vejam outra possibilidade de suporte para reorganização de suas experiências e vivências.

Por fim, espera-se que esta música possa contribuir para e evolução de outros grupos de cessação de tabagismo através das reflexões da letra da música e dos versos repletos de razão versus emoção.

REFERÊNCIAS

BERBEL, Neusi Aparecida Navas. Fundamentos e aplicações. Organização Neusi Aparecida Berbel; prefácio Leonardo Prota. Londrina: Ed. UEL, 1999.

BION, Wilfred R. Experiências com grupos – 2ed.. São Paulo/SP; Imago 1975.

BLEGER, J. Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo: Martins fontes, 1998.

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser inteligente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

LEWIN, K. Problemas de dinâmica de grupo. São Paulo: Cultrix, 1978. MOSCOVICI, Fela. Razão & Emoção: a inteligência emocional em questão. – Salvador/ BA; Casa de Qualidade, 1997. RODRIGUES, Auro de Jesus. Co-autoras: Hortência de Abreu Gonçalves, Maria Balbina de Carvalho Menezes, Maria de Fátima Nascimento. Metodologia científica. 4ª. ed., rev., ampl. Aracaju: Unit, 2011. VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ZIMERMAN. David E. Bion, da teoria a prática uma leitura didática. Porto Alegre/RS; Artmed, 2008.

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Veja também