
Fabio Moya Diez
Flávia Regina Gonçalves Corrêa
Revista 8 – Artigo 2
Introdução
Quantos amigos você tem no Facebook? E com quantos deles você realmente tem uma relação de amizade? Qual a última vez que você olhou no whatsapp? Qual a última refeição que você postou no instagram? Que discurso político permeia na sua timeline?
Conseguimos pensar na resposta para todas essas perguntas com facilidade, pois é esta a realidade que vivemos hoje. A rapidez na informação, os relacionamentos firmados em rede social que não se estendem1 para o mundo real, os check-ins nos restaurantes e baladas caras, as fotos no passeio de iate, a intolerância política sem fonte e causa definida, o preconceito através de comentários fúteis, os memes que surgem na velocidade da luz para todo e qualquer acontecimento mundial.
O quanto isso nos garante relacionamentos de sucesso? Qual a última vez que você conversou com sua esposa sem olhar ao celular? Qual a última vez que você foi a algum lugar e não tirou fotos? Quando foi que você comprou uma roupa porque realmente precisava e não porque estava na moda? Vivemos em mundo líquido, em que os valores se dissolvem facilmente e dão lugar à informação rápida e aos relacionamentos rasos, que se conectam e desconectam com facilidade. Zygmunt Bauman nos dirá, em sua obra Modernidade Líquida, que vivemos em mundo de consumo e solidão, onde estamos “todos em uma solidão e uma multidão ao mesmo tempo”.
A Modernidade Líquida existe e não temos como escapar dela. Porém, esta análise nos possibilita a reflexão de como vivemos e sobre quais são nossas reais necessidades. De que forma podemos resgatar nossos valores e fortalecer nossos laços com aqueles que realmente importam? Ampliar o olhar sobre o mundo contemporâneo e como nossos grupos sociais, notadamente a família, passaram a funcionar ante a realidade da liquidez pós-moderna é o objetivo deste trabalho.
2 Modernidade líquida
2.1 Valores líquidos
Antigamente vivíamos em um mundo de valores fixos e insolúveis. O mundo antigo era feito de certezas, onde estava claro o que era certo e errado, bem e mal. Não havia dúvidas ou questionamentos quanto às regras previamente estabelecidas e a figura de autoridade era respeitada e aceita como tal. A geração que acreditava e seguia esses valores, tende a desaparecer, sendo substituída pelas próximas.
São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar guiar, que estão mais em falta. (…) Estamos passando de uma era de “grupos de referência” predeterminados a outra de “comparação universal”, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado. (BAUMAN, 2007, p.14)
No mundo atual, os valores adquiriam um estado líquido, dissolvendo-se em uma sociedade individualista e instável. Valores familiares, como sentar à mesa para as refeições, foram substituídos pelos lanches rápidos em frente à televisão e os modelos morais que antigamente eram grandes pensadores, hoje são celebridades e jogadores de futebol.
Segundo Bauman, as pessoas buscam a identidade naquilo que consomem e exibem, não valorizam o permanente, mas o temporário. Acrescenta, ainda, que tudo é instável e nada é sólido, mudando constantemente e criando pessoas inseguras e com medo do futuro.
Os valores cultivados na modernidade líquida são individuais e passionais. Bauman diz que é preciso estabelecer o limite ético, pois na ética pós-moderna, o limite entre certo e errado é válido apenas para o outro, mas não para mim.
1 Abrangem, acrescentam. Houaiss
3 O individualismo, amor líquido e cultura pós-moderna
A sociedade contemporânea vivencia uma experiência de sobressalente ênfase cultural no indivíduo. Na emergência do indivíduo, a propaganda e o consumismo são duas determinantes fundamentais a delimitar a profunda estetização da experiência. Se há múltiplas opções de vida, e as regras tradicionais de controle social e moral do comportamento já não servem mais, somente sobra um leque diversificado de alternativas de autoafirmação, o que permite aos indivíduos serem aquilo que vestem ou aquilo que os lugares que frequentam significam.
A criação de diversos modos de entrada no mercado é mais do que a revelação da benesse do mercado para com a diversidade, é mais um modo de multiplicação das práticas do próprio mercado no sentido de sua reinvenção permanente, dos grupos e comunidades.
O autoconhecimento do indivíduo parte de sua disposição para consumir este ou àquele insumo da indústria cultural. A seleção de fatias de mercado, seja emo2 , seja cult3 , seja descolado, seja neo-hippie4, não importa a escolha, trata-se sempre de uma escolha no mercado, ao que foi reduzido o exercício da liberdade, distanciando as decisões familiares coletivas em detrimento do individual.
A liberdade é a liberdade de escolhas no interior da lógica do mercado. A sociedade pósmoderna é a sociedade da sensação, ou seja, a sociedade em que o estético se torna ontológico5. Nesse momento, se existem dois modos de vida, o modo ser e o modo ter, o nosso momento é de prevalência do modo ter. Assim, até mesmo ser e ter se confundem. Isso porque a retificação dos valores torna possível que o ser de nosso tempo se esgote no modo ter, e considerar que se pode ter o ser. Nossa época, dessa forma paradoxal, é a do ser o ter, e ter o ser. O indivíduo se coisifica no que tem, e espiritualiza as coisas que possui. Isso significa a objetificação6 da vida.
Estamos numa sociedade focada nas coisas e não nas pessoas, de modo que o que se tem é um modelo prevalecente responsável por produzir uma sociedade doente. A sociedade assim fundada é aquela que foi assenhoreada7 pela dinâmica do capital. A sociedade assim definida nada mais é do que uma sociedade que exibe o seu caráter anal8 de forma sistêmica e neurótica.
Alter ego9, inflados de si mesmos, não constroem pontes de equivalência relacional, determinando condições pelas quais o que vige10 é uma ideia de liberdade em que “cada um é cada um, e ponto”. A solidão do indivíduo na condição deste “cada um” de ambos os polos se torna uma consequência óbvia da inviabilidade do entendimento. Nas palavras do Professor Leandro Karnal, estudioso de Zygmunt Bauman: “o individualismo é a marca registrada deste mundo líquido. Basta eu dizer: eu acordei às sete; que eu ouvirei ‘eu acordei às seis’. Vivemos uma concorrência permanente, onde ninguém escuta ninguém”.
Apesar da impressão de aumento de liberdade, o homem pós-moderno vive o paradoxo do aumento da dependência do mercado e da fragilidade pessoal. O que se tem aqui é uma subjetividade ameaçada de naufragar sob as forças do mercado, distante, portanto, da capacidade de emancipação. O indivíduo pós-moderno não é livre, senão em imagens evocadas por outdoors e propagandas televisivas; ele é controlado, monitorado, determinado e insculpido11 pelos fluxos e refluxos do mercado.
Sua essência está fora de si; sua essência não é autoconsciência, mas heteroconsciência. Se o mercado se incrementa a todo tempo, se estar no mercado significa enfrentar a concorrência infinitamente crescente dos competidores, o mercado só pode ser visto como o lugar de permanente projeção do novo.
Não importa o que seja e do que se trate, o sucesso do novo está em sua aprovação e consolidação como um novo aceito, ou seja, o próprio ato de consumo se torna uma forma de mensuração da plausibilidade da novidade. Onde tudo é sempre novo e as pressões estão no sentido de forçar o novo, o indivíduo que está sempre “antenado”, se torna ele mesmo uma novidade permanente, que exige do sujeito mais do que a capacidade de comprar, a flexibilidade de adaptar-se à dinâmica dos tempos (leia-se do timing do mercado). Diante de uma oferta sempre gigantesca e inventiva, a multiplicidade de escolhas é uma consequência óbvia.
Em verdade, a questão das comunidades parece ser a resposta social à geração sempre inquietante das insuficiências do antigo geradas pelo mercado. O motor que acelera o mercado também acelera as formas de desarranjo dos laços sociais, gera o envelhecimento do que fica, aumentando a sensação de perda de referenciais para a ação dos indivíduos.
A ansiedade pelo que se terá já está disseminada no imaginário coletivo, antes mesmo da coleção de inverno chegar! Ademais, quanto maior a sensação de liberdade e de afrouxamento dos laços sociais, maior a sensação de mal-estar na pós-modernidade, ou seja, de insegurança, de indeterminação, especialmente considerada a fragilidade na qual está posta a condição de exercício da liberdade.
Os consumidores modernos podem identificar-se pela fórmula: “eu sou = o que tenho e o que consumo”, que nada fique e que tudo passe. O indivíduo entra em crise, pois não se vê. A pergunta que acaba sendo feita, geralmente no divã, é: onde é que eu fui parar?
O mundo da aparência, da moda, das tendências, do imediatismo, do progresso material, da superafetação das coisas é o mundo do eterno ciclo do consumismo, da redundância que se repete ad perpetuum. É o mundo da infantilização, do querer e do gostar, do não querer e do não gostar.
O mundo da aparência é este que conduz massas inteiras a um processo de idiotização – utiliza-se do termo para designar este ato de autocentramento, no sentido grego12, sem deixar de carregar consigo o peso retórico que equivale a um xingamento.
2 Emo vem do termo emotional hardcore, um estilo de musica dos anos 80 que passou a ser nome de uma das tribos urbanas populares nas décadas passadas.
3 Cult é algo cultuado nos meios intelectuais e artísticos (diz-se de pessoa, ideia, objeto, movimento, obra de arte etc.).
4 Neo-hippies são hippies atuais que se inspiram nos anos 60 e 70 para viver uma vida mais natural e saudável.
5 Ontologia significa “estudo do ser” e consiste em uma parte da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência e a realidade.
11 Uso mais frequente no Direito; inscrito, inserido, previsto, descrito, constante (que consta), gravado.
12 Idiotização, no sentido grego, significa pessoa leiga e sem habilidade profissional.
4 A liquidez das relações familiares no mundo pós-moderno
No fluxo dos acontecimentos dessa mudança líquida e pós-moderna, fica a base de todo o tecido social: a família. Não podemos enxergar a família como um núcleo isolado, mas como um núcleo em interação com a vida social. Do ponto de vista social, há sensíveis mudanças no mundo do trabalho que não foram ainda devidamente categorizadas para dentro das reflexões do âmbito da família contemporânea e seus problemas, do ponto de vista sócio filosófico.
A família, certamente, não surgiu na era burguesa. A história desse processo de formação e institucionalização remonta a um mais prolongado estudo das etapas de consolidação da própria vida sedentária humana. Mas como foco para este trabalho, é o estudo de condição da família na passagem da modernidade à pós-modernidade, ou, como introduziu Bauman, da modernidade sólida à modernidade líquida.
A modernidade é o crescente processo de privatização das funções da família, na medida em que ela vai vivenciando a desocupação do público de seu interior, e deixando para a vida pública um número maior de atividades. Por definição, nesse contexto, a família está em oposição ao espaço do público, e compartilha espaço com a personalidade do indivíduo e com a produtividade interessada dos agentes econômicos. Por isso, a família, nesse seu entorno, haverá de representar algo socialmente, de modo que, na era burguesa, se projeta no casamento e no sentimento do núcleo familiar uma ideia instrumental, a de que ambos servem como suportes ou acessórios das relações sociais de poder, especialmente do poder econômico.
A família segue hoje os rumos desenfreados da mudança que se processa no interior do dinheiro, do capital. Do moderno-pesado ao moderno-leve, o que se tem são transformações do sistema de produção, dos mecanismos de produção e das relações de produção. O sistema do capital se globalizou, e a globalização exige um indivíduo sempre pronto para relações de trabalho cada vez mais ´conectadas´ e informais; exige, portanto, um ser que vive entre Londres e Tóquio, que não possui apelo nacionalista, e que vive permanentemente em trânsito.
Nesse sentido, o que se percebe é que uma série de transformações da vida moderna, como a urbanização, a aceleração das exigências de qualificação para o trabalho, o aumento da competitividade nas relações de trabalho, a pauperização da remuneração do trabalho, a informatização e o distanciamento das relações entre trabalhador e empresa, as quais trouxeram novos desafios à sociedade que não passariam distante de afetar diretamente a identidade da família.
Os laços se afrouxam e o interior familiar se degrada. A casa perde a força que possui de drenar o olhar para dentro, e os olhares são cada vez mais direcionados ao exterior, onde a auto identidade de seus membros se torna cada vez menos aderente e cada vez mais escorregadia e destrói o conceito de união e coparticipação.
As pressões por unidade cedem em direção a pressões por realização individual; o indivíduo se destaca para deixar de ser parte de um coletivo em pequena escala. Há um decréscimo de cooperativismo e solidarismo sociais que, em primeira instância, são sentidos no interior da própria família. Afinal, a moral moderna (sólida ou tradicional) foi convertida na moral pós-moderna (líquida ou individualizante), esta última capaz de estimular, no máximo, provisórias “comunidades”.
Quando a sociedade se liquidifica, passa a ter um novo método de produção, uma nova alternativa de ação econômica e, por isso, torna-se irrelevante, ou mesmo um obstáculo, em determinados momentos, à formação do núcleo familiar. Se a família teve sentido num determinado momento do processo produtivo, agora ela se torna redundante. Com isto, as próprias categorias que dão suporte ao processo de formação da identidade do núcleo do lar são alteradas, daí são excluídas as ideias de amor, cortejo, galanteio, pureza, nome de família como sobrenome do homem, sacralidade do ritual de passagem, casamento.
Todas estas ideias, acessórias, acompanhavam com ideologia a formação do próprio núcleo familiar, e significavam enquanto forma de dar estruturação à formação do núcleo familiar sólido, concreto indestrutível.
A esfera da casa, da família, é a esfera da necessidade, da sobrevivência, enfim, do indispensável para viver. Não é mais para responder a estas necessidades que se destinam os esforços da mídia, mas sim para atender à necessidade de tornar obrigatório o que é supérfluo, quando o foco não é mais a família e sim o indivíduo consumista (como, por exemplo, a mulher autônoma, da academia, esteticamente impecável, profissionalmente exemplar).
Há uma mudança de imagens, mas a manutenção de uma mesma lógica dissolutória13, na medida da conveniência de mercado. Assim como a mulher-feliz-consumidora-de eletrodomésticos dos anos 50, consumidora de produtos para o lar (a técnica voltada para o lar-sede-do-consumo), que pressupunha a coerência de ser si mesma e ser para a família, o ideal que exsurge14 em nosso tempo é o da mulher-feliz-super-malhada-comtempo-para-si, consumidora de produtos para si (estética, lazer, viagem, moda, academia – o indivíduo-sede-do-consumo), que desvincula o ser si mesma e o ser do grupo família.
A coerência da família é somente acessória da coerência interna do próprio mercado. Por isso, a família acompanha o fluxo do mercado, de um mercado que se desloca para o abstrato de circulação intensa da economia globalizada, acarretando uma mudança de função para a família. A mudança de funções acarreta uma mudança de natureza: na verdade, a família deixa de ser uma instituição forte; sua privatização é uma desconstrução de sua instituição. Nossa sociedade se encaminha para famílias informais.
13 Que se encontra em estado de dissolução. Que se decompôs. Houaiss.
14 Que levanta, eleva, dirige-se para um dado lugar. Houaiss.
4.1. A individualização da Família
Ao longo do século XX, especialmente, as fases da família podem ser sintetizadas em três períodos: a da família que possui correspondência no casamento-imposição (dever pelo dever), no casamento-amor (dever e romantismo), e, em seguida, no casamento-opção (abaixo o dever) e, afinal, amor-sem-casamento, ou seja, no amor líquido15. O que se constata é o aumento de elasticidade na concepção de casamento, ao mesmo tempo em que deixa de ser uma tarefa indispensável socialmente, para se tornar um complemento adicional da vida profissional do indivíduo, o que certamente compromete a ideia que se havia firmado de família anteriormente, passando o casamento a ser um óbice no crescimento individual e, portanto, supérfluo e desnecessário.
Quando o transitório ocupa o espaço do que é revestido de algum incondicionamento, e neste caso estava a ideia de uma união perpétua, o resultado é uma desestruturação em escala dos valores que davam suporte e sustentação à união matrimonial.
No lugar das relações estáveis, o mundo do amor líquido forma um mercado das “conexões rápidas” (observe-se que estamos falando de “conexões”, e não “relações”), úteis e disponíveis. Nesse mercado da afetividade volátil, aparece como outra mercadoria que é consumido e de quem se dispõe transitoriamente como objeto, até quando outro produto mais útil aparece em sua substituição. O ritmo da afetividade vem marcado pelo timing de mercado, pelo tempo dos produtos que se sucateiam e se tornam obsoletos. O amor líquido é a demonstração exemplar da capacidade dissolutória do capital, que desarranja instituições basilares16 como a família. A volatilidade do contemporâneo imprime ao amor uma feição liquefeita.
Com a crescente individuação da vida contemporânea, o lar perde um tanto de sua significação. Com isso, os pais, indivíduos sobrecarregados por jornadas de trabalho informalizadas, ditas como jornada “flexíveis”, mas que ocupam mais tempo que a jornada de trabalho regulamentada, e “superocupados”, descarregam sobre instituições sociais algumas tarefas antes consideradas privadas, ou seja, tipicamente exercidas pela família, como, por exemplo, delegar a educação na integralidade às escolas e professores, sendo que nesse caso, há uma óbvia transferência de responsabilidades, num processo de diluição da responsabilidade formal da família.
Nos países mais industrializados, é cada vez mais nítida a dissolução da autoridade paterna, sendo que, agora, os membros individuais da família passam a ser socializados em maior escala por instâncias extrafamiliares, pela sociedade de modo imediato. Com isso, a família, que é cada vez mais excluída do contexto imediato da reprodução da sociedade, só na aparência é que mantém com isso um espaço intrínseco de privacidade intensiva: na verdade, ela perdeu e jogou ao público suas funções de proteção.
Os filhos do mundo pós-moderno, sem o estereótipo do patriarca e buscando o vazio da família no público, fazem do lar uma rota de passagem, um lugar de encontros de individualidades. A família perde gradualmente as funções que a caracterizavam como micro sociedade. A socialização dos filhos abandonou em larga medida a esfera doméstica. A família, portanto, deixa de ser instituição para se tornar um simples ponto de encontro das vidas privadas.
A relação do indivíduo com a família se inverteu. Hoje, exceto na maternidade, a família não é senão a reunião dos indivíduos que a compõem nesse momento; cada indivíduo tem sua própria vida privada e espera que esta seja favorecida por uma família de tipo informal.
15 Assim como quando fala da Modernidade Líquida, Bauman refere-se ao Amor Líquido como a fragilidade das relações na pós-modernidade, laços que são feitos e desfeitos com facilidade, níveis de insegurança cada vez maiores e a instabilidade constante que permeia os relacionamentos modernos.
16 Básico, fundamental, que constitui a base. Houaiss.
5 Liquidez familiar e a relação de autoridade
Não há dúvida de que a família tem um papel preponderante na formação da personalidade e da psique humana, agindo tanto por mecanismos conscientes como por mecanismos inconscientes. A afetação da família pela individualização não significa simplesmente um passo adiante, na medida em que os resultados mais danosos parecem se produzir especialmente na dimensão do indivíduo.
A família do pós-guerra cuida na formação do caráter, de impedir com que uma consciência das contradições sociais reais chegue aos olhos dos filhos, que, de dentro de uma redoma, enxergam o mundo apenas sob a ótica protecionista de seus pais; as diferenças sociais não pertencem ao universo de formação das novas classes. A consciência de mundo já aparece, aos olhos do jovem, imediatamente como consciência modificada e livre de qualquer consequência. O que se experimenta, portanto, ao longo dos séculos XX e XXI é um processo de substituição da ética familiar autoritária, numa passagem que vai em direção à falta completa de paradigmas.
No entanto, é notório que há progressos substanciais nas grandes conquistas referidas à emancipação dos filhos e das mulheres, e isso é inegável. Embora a revolução política do século XX, a revolução russa, tenha fracassado, as revoluções vitoriosas de nosso século, embora ainda estejam nas primeiras fases, são as das mulheres, dos filhos e a equidade de gênero.
Nessa linha, o maior ganho está na busca de genuinidade e correspondência entre o sentimento verdadeiro e a prática verdadeira, tendo-se deixado para trás, em grande parte, a hipocrisia que marcava a vida burguesa, especialmente ante o contraste entre a rigidez autoritária e a espontaneidade requerida, o prazer e o dever, a severidade e a descontração, a reprodução e a luxúria.
O resultado da crise da família é o enfraquecimento da capacidade de autonomia do indivíduo; a noção de felicidade é uma confusa concepção a orientar a vontade assoberbada da vida privada. Atualmente, busca-se obstinadamente a felicidade por si mesma que se vê comprometida e ameaçada. Por isso, com a formação debilitada, com o amadurecimento retardado para os desafios da vida e da profissão, com o amparo psicoafetivo incompleto, com a dependência financeira permanente dos pais, cada vez menos os indivíduos se sentem capazes de exercer a autonomia, ou seja, a capacidade de se dar normas, e, nesse sentido, de estar na posse e no exercício de si mesmos, trazendo um trágico processo de infelicidade.
Nesse sentido, como o indivíduo tem o seu nascimento no interior da família, e com o enfraquecimento das instituições ligadas à identidade familiar trazem como consequência a própria desestruturação do indivíduo-ele-mesmo, e o prejuízo social é incomensurável, na medida em que os efeitos em cascata são sucessivos e ininterruptos.
Em tese, a escola teria uma grande tarefa a enfrentar, mas a própria escola deixou de cumprir esse papel, na medida em que teve sua estrutura ressignificada, deixando de ser uma instituição preservadora da cultura, para a relação de consumo mediada pela lógica do lucro. Aulas que são a repetição de fórmulas massificadas de reprodução de informações se tornam o jargão comum do universo banalizado do saber, tendo sido banida a rigidez da antiga adoração aos pais e outras autoridades, e parece certo que a velha reverência para com a autoridade não voltará.
5.1. As massas frutos da publicidade familiar
É pela perda de referências que se experimenta crescentemente a busca por símbolos, heróis e ícones. Eis que as gerações sólidas para este caso entenderiam estas buscas como boçais ou exibicionistas, já que a solidez residia na construção da própria pessoa, e não um mero ser de consumo. Quando massas inteiras são tomadas pelos ícones de mercado, projetam neles um imaginário social fundado na inconsequente inconsistência de suas personalidades individuais.
O frenesi dos fãs do rock, a espetacularização da política, o enfraquecimento do sistema educacional e o descolamento da família são os caminhos convergentes que conduziram a este processo de enfraquecimento da autonomia de entronização da irresponsabilidade para o centro da vida política nacional. O ser do nosso tempo converteu-se na negação de sua própria natureza; a perda da autonomia é o fruto dessa superficialização que se entrega como presa fácil à dimensão de uma exterioridade estéril que se destaca do egoísmo individual e social predominantes.
Trata-se de um quadro politicamente perigoso, pois para toda uma geração o gozo se tornou um fim em si mesmo. Hoje, a extensão dos modos de dominação independe da consciência de que se trata de uma questão de ideologia burguesa, pois esta não é mais necessária para sustentar a dominação; a dominação já é sistêmica e plenificada.
Uma vez inconscientizadas, são massas inteiras que se encontram aprisionadas ao padrão, pois são múltiplos os fatores de alienação dispersos pela vida social (televisão, redes sociais, consumo, especialização da política). Por isso, a opressão se realiza com o consentimento da maioria, que não reconhece em si um sistema de dominação em operação. Dessa forma, são os próprios indivíduos oprimidos que rejeitam a autonomia.
6 Processos de grupo na modernidade líquida
Fazendo uma análise a partir da teoria das Necessidades Interpessoais, de Will Schultz, observa-se que os grupos, dentro da sociedade líquida, possuem dificuldade de ultrapassar as primeiras fases do processo grupal. Ou seja, os indivíduos definem seu interesse em fazer parte ou não de um determinado grupo, atribuindo a este significado para si e a necessidade de estarem inclusos naquela realidade. Nesta fase, podemos observar os movimentos dentro dos grupos sociais, em que indivíduos modificam questões estéticas, por exemplo, para sentirem-se parte de um determinado grupo. Ou passam a seguir uma determinada causa, ouvir determinado tipo de música, relacionar-se ou comportar-se de forma X ou Y. Tudo isso para sentirem- se pertencentes a um grupo ao qual atribuem como significativo para si mesmos. Nesta fase, não existe um vínculo emocional profundo, apenas um processo de identificação.
Após ultrapassarem a fase de inclusão, o processo do grupo segue na fase de controle. Nessa etapa as principais demandas no grupo passam a ser luta pelo poder, competição e a busca por diferentes papéis. Ou seja, aspectos relacionados à liderança, por exemplo, começam a ficar evidentes. Realizando um paralelo com o que diz Bauman, entende-se de que nesta fase enfatiza-se a individualidade e o consumo, de modo que atualmente o poder está relacionado ao ter e não ao ser, bem como às necessidades individuais acima das coletivas. Desta forma, os papeis definem-se no grupo a partir da forma como os membros mostram suas conquistas e comportam-se perante aos demais.
Observa-se que na Modernidade Líquida a maior dificuldade dos indivíduos dentro dos grupos é ultrapassar estas fases iniciais e entrar na fase seguinte, a fase de afeto, onde de fato são construídos os vínculos reais e duradouros, bem como expressos sentimentos originais. A fragilidade dos vínculos no cenário atual faz com que os grupos fiquem presos na fase de inclusão e controle e tenham dificuldade de demonstrar sentimentos ternos e envolver-se de maneira profunda com os demais. Existe a necessidade de se sentir valorizado e amado, porém esta necessidade entra em contraponto com a fluidez dos relacionamentos modernos.
Os indivíduos vivem a modernidade líquida e esta supervalorização individual, porém, buscam constantemente por vínculos e relações permanentes. Em suas queixas mais comuns está a dificuldade de encontrar pessoas para relacionamentos sinceros e duradouros. A mãe ainda se queixa que o filho não se senta à mesa para o almoço, enquanto o marido reclama por ela dar mais atenção ao celular do que a ele. O filho por sua vez, queixa-se que os pais não lhe compreendem. As mulheres queixam-se que os homens não buscam relacionamentos sérios, enquanto eles encaram como fúteis as necessidades estéticas que elas possuem atualmente. Nesse sentido fica claro que, mesmo diante desta instabilidade que permeia a sociedade, ainda existem valores sólidos intrínsecos aos indivíduos, aliados à necessidade de vínculos que tragam segurança e estabilidade.
O que se subentende com esta reflexão é que a sociedade de hoje é carente. Ela valoriza o consumo e a imagem individual para impressionar o outro. Ou seja, a real necessidade por trás deste narcisismo é mostrar ao outro que se é digno de ser parte de um grupo e se relacionar. Sendo assim, existe ainda um valor extremamente sólido permeando as relações, porém, ele desaparece em meio a tantas necessidades superficiais propostas pela mídia e a sociedade.
Com a supervalorização do indivíduo que acompanha esta Modernidade Líquida, os processos grupais são impactados, pois com valores líquidos e fluidos, os indivíduos sentem-se cada vez mais inseguros e suas relações com os modelos morais e figuras de autoridade são descaracterizadas.
Bauman diz, porém, que “nenhum molde foi quebrado sem que fosse substituído por outro; as pessoas foram libertadas de suas velhas gaiolas apenas para ser admoestadas e censuradas caso não conseguissem se realocar, através de seus próprios esforços dedicados, contínuos e verdadeiramente infindáveis, nos nichos pré–fabricados da nova ordem” (BAUMAN, 2001, p. 13).
O autor nos diz que existem dois valores essenciais e indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz: segurança e liberdade. O autor alega que não é possível ser feliz sem um deles, pois segurança sem liberdade transforma-se em escravidão, bem como liberdade sem segurança, é um perfeito caos. O problema, entretanto, é que ninguém encontrou a fórmula perfeita para equilibrar esses dois fatores. Você sempre ganha em um e perde no outro. Não há como fugir disto. Porém, nunca iremos parar de procurar esse equilíbrio.
Para adquirir segurança, o ser humano precisa restabelecer sua noção de coletividade para além do mundo virtual, pois é no contato real com o outro que ele encontra forças e suporte para afirmar suas decisões. Em paralelo, mantém sua liberdade através dos relacionamentos saudáveis e do equilíbrio entre todos os aspectos da vida, libertando-se do aprisionamento causado pelo mundo do consumo e buscando novas alternativas de encontrar a felicidade.
Sob este aspecto, destaca-se a importância de se trabalhar os grupos para que este olhar para a coletividade seja resgatado. Provocar o entendimento de que hoje as necessidades locais já não são prioritárias, mas sim as necessidades globais, que implicam em visão mais ampla da sociedade, do mundo e dos grupos em que se está inserido. E, sendo assim, instigar para que a partir do trabalho em equipe e da cooperatividade tais necessidades possam ser atendidas.
Hoje existem grupos que lutam por uma mesma causa, possuem objetivos em comum e utilizam das ferramentas proporcionadas pela modernidade para chegar a este objetivo. Causas a favor da diversidade, por exemplo, ou relacionadas à violência contra a mulher, encontram espaço para tomarem força a partir dos mesmos mecanismos que hoje separam o individuo de seus semelhantes. O problema, porém, é que por mais que haja apoio e solidariedade, não há vínculo real.
Não é o fim da grupabilidade, visto que o indivíduo possui, mais do que nunca, a necessidade de estar integrado a um grupo. A necessidade de afeto e aceitação é ainda maior do que antigamente, pois em outros tempos, havia maior segurança e padrões pré-estabelecidos que tornavam os membros mais conscientes do seu papel em cada grupo que pertenciam. Hoje, com a modernidade líquida, os papeis se confundem e a necessidade de provar a si mesmo o quanto se é merecedor de fazer parte de uma determinada sociedade, acaba causando uma confusão e mantendo os indivíduos mais solitários. Porém, se os membros do grupo conseguirem trabalhar a dificuldade de afeto X necessidade de controle dos indivíduos nele presentes, conseguirão manter um grupo mais saudável e maduro, com membros seguros e espontâneos.
É nesse sentido que o processo de grupo deve ser desenvolvido e trabalhado, de modo a unir pessoas com os mesmos ideais, muitas delas que já possuem um olhar voltado para as necessidades do coletivo e fazer com que atuem para além do mundo virtual e possam criar laços vivos e duradouros. O grupo pode auxiliar na busca pelo afeto, retomando a discussão de Schultz, de modo que não seja apenas uma fuga para que os indivíduos não se sintam sós neste mundo individualista, mas para que possam de fato estabelecer vínculos e relacionamentos reais e duradouros, satisfazendo a necessidade latente da busca pelo outro.
É preciso então aproveitar as ferramentas do mundo líquido de forma positiva, de modo a estimular a busca por valores sólidos e reais. Os indivíduos manifestam esta necessidade todos os dias e cabe ao coordenador do grupo saber como trabalhar esta necessidade, que é coletiva, de modo que todos os integrantes sejam impactados e sintam-se novamente seguros.
7 Considerações finais
As mudanças no mundo pós-moderno trouxeram consequências muito específicas para dentro do universo da família.
Nesse sentido, como o indivíduo tem o seu nascimento no interior da família, o enfraquecimento das instituições ligadas à identidade familiar trazem como consequência a própria desestruturação do indivíduo-ele-mesmo, pois a sensação de desnorte17 é acompanhada pela dúplice perspectiva, de um lado, as pressões por uma abertura de alternativas e possibilidades de escolha, de outro lado, o decréscimo da capacidade de exercer com autonomia e responsabilidade escolhas, uma vez que a orientação primordial parte da identidade do próprio núcleo familiar.
O prejuízo social é incomensurável, na medida em que os efeitos em cascata são sucessivos e ininterruptos e, ao mesmo tempo, percebe-se que na modernidade foram edificados conceitos que estruturaram a formação histórica de certa identidade de família que, agora, sob novos contextos produtivos e novas exigências do capital, se tornaram óbices ao individualismo contemporâneo e, exatamente por isso, caminha-se no sentido da desagregação da família, de modo que a conclusão não pode ser outra senão a de que o que importa não é o indivíduo e sua condição, especialmente seu bem-estar moral e psicológico; o que importa é o fim estratégico almejado, que a tudo instrumentaliza, inclusive a família.
A acomodação de todas estas transformações ainda não se consolidou, de modo que tudo indica que se vive ainda a transição paradigmática, mas que não exista ainda nenhum tipo de consolidação que registre a formação de uma nova identidade familiar, ao menos em tese, substitutiva da concepção anterior. Ainda nos encontramos em suspenso no ar; daí a sensação de indeterminação. São os tempos líquidos.
Talvez o excesso de renúncias no interior de um sistema opressivo, que, uma vez ruído, deu lugar ao seu oposto total, quando se vive de uma desmedida arbitrariedade no mundo do amor líquido, onde o estado de coisas em que se vive não pode ter-se tornado definitivo, na medida em que contrasta em muito com a dinâmica normativa das concepções de vida possíveis.
Talvez estejamos ainda processando uma grande revolução e não estejamos ainda revestidos das condições para enxergar, além do presente, os bons frutos deste processo. Mas, antes que tenhamos essa lucidez, vale constatar, muitos prejuízos já terão se processado, destes que não retornam mais, destes que não se consertam mais.
É preciso então, antes de lidar com os erros irreversíveis, trabalhar os indivíduos no resgate para a coletividade. Não a coletividade que hoje conhecemos exposta nas redes sociais, não as reuniões presenciais em que todos estão em silencio em volta da mesa mexendo em seus smartphones. Mas resgatar o caráter real da coletividade, onde o olhar do individuo transfira-se de si próprio para o outro, sem julgamentos, apenas no intuito de entender sua real necessidade e de que forma toda sua bagagem pode contribuir para que ambos possam desenvolver-se em conjunto, em prol de um mesmo objetivo: uma sociedade mais sólida, consistente e humana.
O trabalho de grupo é a maior “arma” para trabalharmos a solidez nas relações, pois é dentro do grupo que o individuo se descobre, se aceita e se relaciona e, a partir daí, aprende a criar vínculos mais profundos. Trabalhar a necessidade de controle dos indivíduos e quebrar a barreira entre controle e afeto passa a ser o desafio dos coordenadores de grupo, de modo a resgatar o olhar para a coletividade e reestabelecer relações mais duradouras.
17 Ausência de direção, de rumo. Houaiss.
Referências
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BAUMAN, Z. Ética pós–moderna. São Paulo: Paulus, 1997.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. 2001, Ed. Zahar, Rio de Janeiro.
BAUMAN, Z. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. 2011, Ed. Zahar, Rio de Janeiro.
MILÊNIO. A fluidez do ‘mundo líquido’ do Zygmunt Bauman. Disponível em: . Acesso em 09/2016.
PSICÁNALISE E HUMANIDADES. Zygmunt Bauman “Modernidade Líquida” I Entrevista. Disponível em: . Acesso em 09/2016.
SCHUTZ, W. Profunda simplicidade: uma nova consciência do eu Interior. SP, Ágora, 1996.